quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

QUILOMBOLA: um aprendizado da vida; Por Prof. Luizel Simões de Brito (*)



Criei-me, cresci e fui educado com a idéia de que quilombolas foram negros que viveram, no passado, no Quilombo dos Palmares. Assim, me ensinou a escola. Assim, aprendi nos livros, ditos didáticos, mas sempre elaborados sob a orientação e a supervisão da classe dominante, política e ideológica. Tinha em minha mente Zumbi, como única personalidade de um Quilombo. Um negro cuja história ora é exaltada, ora é atacada pelos relatos que acessamos nas bibliografias. Ora ele é herói, ora é bandido; ora é líder, ora é subalterno; ora é defensor, ora é traidor; enfim, são tantas as dicotomias sobre Zumbi dos Palmares, que nos chegavam e, ainda nos chegam até hoje, inclusive por pessoas negras. Conheço quem afirme que ele (Zumbi) foi o “pior bandido que o Brasil conheceu”. Bem, para mim, mesmo com tantos conflitos ao subjetivá-lo, um herói. Ocorre que, ainda para mim, até então, o único herói de quilombo e, sem pestanejar, talvez o único herói negro, pois de outros, quase nada ouvi falar ou encontrei nas leituras escolares.
Ocorre que, aos 39 anos de idade, com 16 anos como servidor público federal lotado na Universidade Federal do Amapá, destes, 11 anos como professor universitário, fui convidado para ser uma espécie de consultor técnico de uma Secretaria de Governo do Estado, com status de Extraordinária, que cuida das políticas voltadas para os Afrodescendentes do/no Amapá (a SEAFRO). Aceitei, honrado, o convite e, em 02 de setembro de 2009, passei a atuar, mais proximamente, em ações voltadas para esse recorte social amapaense. Até então, minha única ligação com a afrodescendência era religiosa quando, extraordinariamente, fui suspenso e feito Ogã numa casa de Candomblé, sem nunca ter pisado em um terreiro, haja vista minha história de vida evangélica (havia estudado para ser pastor).
Assim, passei a conviver com pessoas; comecei a interagir com movimentos, dos mais diversos, na luta pela difusão da negritude através da arte, da cultura, da religião, da fé, do direito a terra; ouvi, acessei e assimilei histórias belíssimas da vida de negras e de negros do nosso Estado; aprendi que, além do Marabaixo, há outras manifestações, de danças e de ritmos, que nossas irmãs e irmãos negros mantém vivas pelas várias comunidades do Amapá. Encontrei e reencontrei pessoas, como Raimundinha Ramos, Negra de luta, ao lado de quem tive a honra de, na então gestão prefeito Papaléo Paes, organizar o primeiro evento com a denominação Consciência Negra, realizado nos jardins da Casa da Cultura, onde é a residência oficial do Prefeito da Capital.
Aliás, aqui abro um parêntese para falar daquele evento, apresentado por mim e por Domiciano Gomes, que teve a frente o Prof. Luiz Alberto, sociólogo e acadêmico, foi de uma simplicidade espantosa na sua concepção, mais de uma grandiosidade fantástica no alcance de seus mais sublimes objetivos de divulgar a cultura negra, diminuir o preconceito, contrapor-se ao racismo, massificar o conceito de consciência negra, socializar idéias, demonstrar projetos, unir ideais, reunir pessoas e outros, muitos outros. Foi o embrião do que se conhece hoje como “Semana da Consciência Negra” que só acontece na atualidade se tiver uma quantia substancial de recursos públicos investida. Que bom que, em minha vida, consegui escrever meu nome, nas boas lembranças de pessoas como Raimundinha, na realização do primeiro evento público promovido para homenagear a Negra e o Negro de Macapá.
Voltando ao tema do início desta reflexão, dentre outros, o quase primeiro grande desafio da Gestão do Secretário da SEAFRO, Manoel Azevedo de Souza, o Prof. Maneca, foi organizar, conjuntamente com a CONAQ, a solenidade de entrega de uma Certidão de Autodefinição como Remanescentes de Quilombos aos Comunitários de uma localidade denominada Engenho do Matapi. O Governador do Estado, então em exercício, Dr. Pedro Paulo Dias de Carvalho, confirmou sua presença. Ora, a mais alta autoridade do Executivo estadual fazer questão de estar presente, obrigou-me a conhecer e entender o real significado daquele evento, daquela Certidão. Foi então que descobri que o Governo Federal, a partir de 2003, iniciou uma série de políticas compensatórias para os afrodescendentes, dentre muitas delas, a de reconhecimento do direito de propriedade da Terra. Aquela Certidão, denominada pelo Prof. Maneca de “segunda carta de alforria”, era o início de tudo.
No Amapá, um grupo organizado, passou a se dedicar ao estudo das Leis, dos Decretos, das Instruções Normativas, enfim, de todo o ordenamento jurídico que cuida da matéria Titulação de Terras Quilombolas, para entender, compreender, socializar, orientar, promover e conduzir ações juntos às Comunidades Tradicionais Afrodescendentes, visando o sonhado título de domínio definitivo. Despertaram ódio de alguns, mas conquistaram o respeito de muitos outros, dentre os quais me enquadro. Com ou sem apoio público, conseguiram um número expressivo de processos hoje tramitando pelos órgãos competentes federais. Atualmente, o nosso Estado já tem comunidades tituladas, outras em processo de titulação, várias certificadas e outras, aguardando a emissão do documento inicial, e ainda outras querendo ser certificadas. Sem dúvida, posso afirmar, a gestão do Prof. Maneca, à frente da SEAFRO, foi uma mola propulsora, para o ânimo desse grupo de quilombolas. E, mais ainda, o recente Projeto de Lei do então Deputado Estadual, agora governador a partir de 1º de janeiro de 2010, Camilo Capiberibe, que dispõe sobre os procedimentos para os casos das Terras de Domínio do Estado.
Foi nesse momento, que meus conhecimentos e conceitos de quilombo e, consequentemente, de quilombolas, começaram a ser lapidados. Aprendi que Palmares não foi o único Quilombo deste imenso Brasil, conheci a história de Kalunga, Valença, Tengo-Tengo (este o maior conhecido), e muitos outros. Aprendi, também, que no território geográfico onde está localizado o Amapá teve Quilombos, nos mesmos moldes que outros do País, sobretudo, para o Norte do Estado, acima do Rio Araguari, com muito poucas informações registradas, mas, com relatos e fatos concretos.
Com as políticas compensatórias do Governo Lula, a conceituação de Quilombo deixa de ser aquele transmitido pelos livros didáticos, onde se afirmava ser lugar de Negros fujões e baderneiros, para se tornar, lugar de resistência. Resistência à ganância capital dos senhores coloniais; resistência à falácia cristã de povo sem alma; resistência à sua falta de memória, com perda de suas origens; resistência pela manutenção da sua fé; resistência aos ataques às suas culturas; enfim resistência pela vida.
Quilombo, não é mais lugar de fujões, é lugar de Cidadãos Brasileiros que se uniram pela sobrevivência. Que se uniram para chegar nestes séculos vividos e por viver, com orgulho de ser humano, orgulho de ser negro e, sobretudo, mais recentemente, orgulho de ser quilombola. Assim, para mim, quilombola, qualquer que seja o seu vínculo comunitário, é o verdadeiro herói, não importa se não travou lutas, como Zumbi e António Francisco de Melo e outros, mas, lutou e está lutando, permanentemente, pelo direito a terra, pelo direito a vida com dignidade.
Dessarte, quilombola e o verdadeiro herói negro contemporâneo para mim, e hoje ele está:
- na capacidade de multiplicar um único salário municipal para cerca de 100 famílias, como o faz Benedito da Anunciação do Kulumbú do Patoazinho;
- na sabedoria de quem nunca freqüentou uma academia, mas tem a reflexão ideal quando provocado, como Dadá, de São João do Matapi;
- na fé, quase inabalável, que move o Ser Humano pelo desconhecido, como da Dona Raimunda do Mata Fome;
- na alegria contagiante e multiplicadora, sentida e refletida, como do Júlio de São Tomé do Aporema;
- na vontade permanente de fazer brotar da terra o pão, comunitariamente, como do Paredão, de São Pedro dos Bois;
- na grandiosidade guerreira, como um verdadeiro Golias, da pequena Joelma do Rosa;
- no saber comunicar-se, como do jovem Ivaldo do Engenho Matapi;
- na juventude esperançosa da Patrícia do Alto Pirativa;
- na mansidão, mas sem submissão, da Dona Helena, do Cinco Chagas do Matapi;
- no bem-receber, do Mundinho do Ambé;
- na comunhão e no compartilhar, do seu Rubens, do Conceição do Macacoari;
- no sorriso sincero das crianças do Mel;
- no querer ser, testemunhado pelas ações e no coração dos remanescentes do Palha e nos comunitários do Maracá em Mazagão.
Perdoem-me, se assim eu for digno, se de alguém esqueci, mas, sintam-se, verdadeiramente, reconhecidos no nome de cada um que a minha lembrança fez brotar neste momento. Finalmente, ser quilombola é acreditar em seus ideais e mais que isto, é ter a certeza que eles serão úteis às comunidades, não importa a distância, como é o agir da Núbia de Souza, uma heroína, embora não deseje assim ser reconhecida, mas que enfrenta todas as dificuldades, todas as injustiças, pela CONAQ Amapá, e todos os que a esta entidade se vinculam. Uma guerreira que tem muito a ensinar, e me honro agradecer por tudo o que com ela aprendi, mas que, humildemente, também reconheceu que comigo algo aprendeu. Núbia de Souza, quilombola por convicção, quilombola por conhecimento e (re)conhecimento de que é possível ser Negra e Negro, cidadã e cidadão orgulhoso no/do seu lugar, na/da sua terra, da sua gente e da sua origem. Há muitos que não reconhecem o valor dessa combatente, mas há muitos outros que a ela se miram; há muitos que procuram desqualificar sua luta, mas há muitos outros que a dignifica; há muitos que tentam persegui-la, mas há muitos outros que a acolhe; há muitos que tentam desesperá-la, mas há muitos outros que lhe trazem esperanças; enfim, luta por uma causa, se não o é pela própria sobrevivência ideológica, é, e me parece que será sempre, pela sobrevivência do conceito do verdadeiro povo de quilombo, o verdadeiro quilombola das resistências perenes.

(*) Professor Assistente II do quadro permanente da Universidade Federal do Amapá; Bacharel em Secretariado Executivo.

4 comentários:

  1. Parabéns pela belíssima reflexão. Precisamos espalhar esse conhecimento ao mundo. Mostrar que o povo quilombola é guerreiro.

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  2. Que texto lindo.
    Nao esperava menos de uma das pessoas responsáveis por um dos momentos mais felizes da minha vida: a conclusão do Ensino Superior: Curso de História-Bacharelado.
    Aprendi muito com você e ainda estou em fase de aprendizado, mas hoje posso dizer que, através dos seus ensinamentos, ganhei mais forças para continuar RESISTINDO.
    Devo dizer que nosso sangue Quilombola não deve correr somente nas veias do nosso povo, mas sim nas veias de alguém como você, que abraça nossa causa e luta por elas junto conosco. Você é um dos nossos heróis.
    Obrigada por toda a sua contribuição na história de nossas vidas, na história do Amapá, do Brasil.✊��

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  3. Para mim foi uma honra encontrar com o senhor na estrada da vida. Pois sei que é uma pessoa importantíssima na resistência e no recontar de nossa história, pois estudando o passado delineamos o futuro que merecemos e queremos. Seus escrito é riquíssimo e sim é necessário que muitos o assessem.

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